Contos e Encantos


Uma família, pai, mãe, oito filhos e um genro viajam o país levando em suas bagagens, além das caixas com bonecos, seus sorrisos, suas alegrias e brincadeiras.

Fotos Divulgação Carroça de Mamulengos


Viver e respirar arte faz parte da trajetória do grupo Carroça de Mamulengos. Esta trupe de saltimbancos formada por 11 integrantes estão na estrada desde a década de 80. O grupo composto por: atores-manipuladores de bonecos gigantes; músicos; palhaços; acrobatas e malabaristas em pernas-de-pau celebram por meio de poemas e canções, a cultura e arte brasileira.
No início era apenas Carlos Gomide e sua caixa de mamulengos. Em 1977 ele entrou para o grupo de teatro que coincidentemente chamava-se Carroça, dirigido por Humberto Pedrancini, e nele realizou alguns trabalhos com bonecos feitos de sucatas. Na época montou um espetáculo com textos de fábulas, já visualizando o teatro de bonecos como linguagem para o seu trabalho. Era o começo de uma vivência que se estenderia para outra geração. Somente na década de 80 quando foi morar em Brasília, conheceu Shirley França, sua atual companheira, surgindo deste encontro o Carroça de Mamulengos.
Desde o principio, a dupla, teve a intenção de projetar e realizar os sonhos de transformar a realidade pela arte, dar vida à vida, fazer teatro de rua e brincar. Simples, mas elaborado. Assim define Shirley quando se refere ao tratamento dado a toda composição de espetáculo do Carroça. Pois, por mais que tenha essa elaboração minuciosa, elas são tratadas com simplicidade e singeleza possibilitando uma interação profunda de coração com a platéia.

No surgimento do grupo Carroça, Carlos Gomide conviveu com grandes mestres, como: Os Irmãos Relâmpago, Chico de Daniel, Pedro Boca Rica, entre outros; além de aprofundar seu aprendizado com o mestre Antônio do Babau em Mari, na Paraíba. Qual a importância da companhia ter se aproximado desses mestres da cultura?
Na verdade, quando você faz uma opção de vida como essa, você pensa: Onde buscar esse conhecimento? Você vai as Universidades? as bibliotecas? Aos centros urbanos? Aonde, aonde? Não é muito raro que exista um nordestino, dentro de um centro urbano, lá escondidinho, tentando levar sua arte. Naturalmente isso está no interior do Brasil, onde as coisas acontecem, com mais facilidade nas cidades pequenas, onde a cultura popular pulsa, onde tem uma movimentação religiosa e uma resistência cultural. Então, a partir daí foi opção dele, e depois, conseqüentemente, a minha e dos meus filhos. Viver no meio dessa efervescência cultural, que está no interior do Brasil, seja em Goiás, nos conjuntos de Catira, com os Violeiros em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro com o Jongo

O grupo Carroça de Mamulengos escolheu o Cariri para fazer sua morada. Como vocês chegaram até esta região para trabalhar com Cultura Popular?

Quando eu conheci o Carlos, eu já tinha uma experiência com Teatro em Brasília. Só que era um teatro mais ligado ao palco italiano, a estrutura de texto, a exercícios de laboratórios, bem dentro da formação teatral convencional e acadêmica. Então, eu já estava na faculdade quando conheci o Carlos e eu fiz a opção de largar esse meio e saí com ele para viajar o Brasil, fazer outro tipo de faculdade. Um outro estudo que é de campo, conhecendo pessoas nessa vivência. E foi assim que nós saímos de Brasília, Carlos e Eu. Nós tivemos o intuito de vir justamente para o Cariri, por causa da relação com o Padre Cícero, as questões religiosas da região, dos movimentos sociais que aconteceram por aqui e dessa efervescência cultural que a gente sabia que existia. Quando chegamos em Fortaleza, pegamos um trem e viemos até o Crato. A princípio, a idéia era morar no Crato, mas quando conhecemos o Juazeiro, nos identificamos mais, pela questão populacional, por estar mais próximos destas pessoas mais simples. Conseqüentemente, viemos para ficar e fomos começar a vivenciar o que a gente sabia fazer.

Uma coisa que nos encantou bastante foi o fato de ser uma trupe numerosa, todos serem da mesma família e fazerem parte do mesmo contexto artístico e cultural que vocês vivenciam desde a década de 70. O surgimento dos personagens acontecia na medida em que os filhos vinham nascendo?
Nós nunca quisemos que as crianças ficassem em casa. Nem eu mesma, grávida ou por causa de ter menino pequeno, ficava em casa. Então, eu estava em todos os momentos do Carroça, seja ajudando nos mamulengos, trabalhando na rua, montando o Palhaço Alegria ou em cena até a hora de ter o neném. Quando tinha o neném, ficava num cantinho, tinha o resguardo normal e o Carlos continuava batalhando. A partir do momento que o neném crescia, ficava durinho um pouquinho, eu já estava na rua de novo rodando o chapéu e fazendo os espetáculos.
Quando a Maria completou dois anos, nós criamos para ela um personagem, que foi uma burrinha. Essa burrinha foi o marco, também, na história do Carroça. Porque essa mesma burrinha está em cena até hoje. Todos os filhos brincaram – a Maria, o Antônio, o Francisco, o João, o Pedro, o Matheus, a Luzia e a Isabel. Então, esse personagem já era uma força, porque a Maria não ficava assistindo; ela se sentia parte da brincadeira dos pais dela. Nós queríamos que fosse uma brincadeira para ela também. Logo em seguida, mesmo sem eu esperar, Papai do Céu mandou o Antônio para mim. Quando o Antônio cresceu, a Maria já estava maiorzinha e a burrinha ficou pequena para ela. Aí inventamos um cabritinho. Maria ficou brincando com o cabritinho e o Antônio ficou brincando na burrinha. Aí, nesse momento, foi interessante, porque eu comecei a orientar a Maria para a questão cênica, de como se comportar, de como falar alto e como se expressar diante dos espetáculos. Então, a Maria entrou em cena aos dois anos e hoje está com 23 anos, e nunca mais saiu de cena.
Em que momento vocês começaram a incorporar a seus espetáculos projetos de apoio cultural?
Os incentivos culturais mesmo, para ser sincera, na história da gente não chega a compor os dedos da mão esquerda. Então, foram pouquíssimos. Inclusive, nós não acreditamos nos incentivos culturais como profissões da verdadeira arte. Principalmente, porque nós estamos do lado dos mestres da Cultura Popular, nossos mestres anônimos, e estes mestres hoje estão morrendo à míngua e estão passando uma dificuldade muito grande por conta de não terem acesso, ainda real, a esses meios que estão estabelecidos no Brasil. Esses incentivos culturais ainda são para poucos, ainda são para aquelas pessoas informatizadas, aqueles que sabem fazer os formulários de preenchimento, que sabem entrar dentro dessas mamatas governamentais, destes meios burocráticos. Se você se vincular a um incentivo cultural, você tem que se vincular a uma série de questões, principalmente políticas.

Quem faz os figurinos e os cenários dos espetáculos?
Toda a confecção do material cênico do Carroça de Mamulengos passa pela gente. Os bonecos e o cenário. Agora, os figurinos, às vezes, precisam de algum corte e costura. Então, temos costureiras que nos ajudam na composição desses figurinos. Mas, toda a elaboração é feita por nós.

Em que momento a Música veio aparecer nos espetáculos do Carroça de Mamulengos?
Bom, aí entra a questão dos filhos. Porque nós sempre tivemos uma ligação com a Música, seja através de um pandeiro ou de uma caixinha que a gente tocava. Mas, a Maria cresceu e foi trilhando um caminho próprio, como também o Antônio e o Francisco. Já o Carlos e Eu nos ligamos ao teatro de bonecos. Então, a Maria desenvolveu esse lado musical e com ela veio à elaboração musical do grupo. Porque ela, dentro da estrutura familiar, é uma musicista. Ela optou por esse caminho. Ela me disse: - Olha mãe, eu não quero artes plásticas, nem teatro de bonecos. Eu estou em cena, gosto de representar, de ser artista e de cantar com o meu pai; mas, quero mesmo é tocar. Ela desenvolve a composição musical do grupo, ou seja, puxa todo mundo para entrar no tom e executa a direção musical do espetáculo. O Carlos, por outro lado, além de ser o artista plástico, na questão de composição dos bonecos, é também o compositor. Então, nesses anos de andanças, ele criou esse meio de ligação com o divino que é escrever. Ele escreve os temas e as poesias. Tanto que o CD Alumiação, que foi gravado na Paraíba, das vinte composições, doze são do Carlos e oito de domínio público.

Qual foi o ano de nascimento do CD Alumiação?
Foi há doze anos. Um CD que praticamente nós reimprimimos ele sempre. Hoje, nós já temos, mais ou menos, uma média de 16 mil cópias já distribuídas. Isso de mão em mão, doadas, presenteadas, de todo jeito. É um CD que vem trazendo histórias. Muitas crianças que escutaram pequenininhas já são pais. Os pais já passam para seus filhos e querem um novo CD, porque pretendem presentear os amigos ou os afilhados. É um CD que vai compondo a história. Agora, dessas músicas atuais do Carlos, que tem mais de cem composições, nós não gravamos mais nenhum disco. Então, a gente está sempre com esse sonho e esse projeto de criar com essas composições um disco, de repente até um disco duplo. Aí, seria um disco completamente diferente do CD Alumiação, que basicamente é uma história de teatro e circo, o tema dos personagens e as canções de palhaço. Nessa nova fase, esse novo disco que o Carroça pretende fazer, já vai entrar baião, xote, xaxado, marchinha e valsa.

Todos os filhos iniciaram na música de forma autodidata?
O incentivo é autodidata, porque a partir do momento que eu optei viver de arte com o meu companheiro, o nosso meio sempre é voltado pra isso. Nós nunca estamos do lado convencional da vida. A gente vai pelas veredas e pelos caminhos mais estreitos. Por isso, sempre conhecemos músicos, artistas, pessoas que a gente encontra na brincadeira e simpatiza, amigos que a gente vai encontrando e formando essa teia. É essa cadeia que vai formando e sustentando a nossa família. Sustentando os nossos filhos e ajudando na educação deles e nos alimentando desse ideal de vida. Então, por exemplo, estávamos em Goiás, em Águas Lindas, o que há de melhor na história da Viola do Estado, ou seja, o Roberto Correia já estava lá nos acompanhando e sendo nosso amigo. Ele estava com a gente no meio da convivência e a Maria vivenciando todos os ensinamentos com ele. Em Campinas (SP), nós aprendemos muito com o Paulo Freire e a companheira dele. É a possibilidade de nossos filhos estarem nessa convivência harmônica e de amizade, principalmente de amizade sincera, que ampara a gente neste Brasil a fora e aqui no Cariri do mesmo jeito, que podemos proporcionar e vivenciar este aprendizado junto com todos esses amigos. A partir daí, é um pulinho para que as crianças tenham suas vivências naturais e façam isso cotidianamente. Eles não precisam acordar de manhã e ir para uma universidade estudar isso, eles estão vivendo no café da manhã, no almoço, no jantar, na saída, em todo lugar, ou seja, a Música e a Arte. A gente respira e vive Arte em todos os momentos da nossa vida. Isso facilita essa história de sermos autodidatas, de estar buscando esse caminho. É claro que tem que ter um pouquinho de pulso firme, de dedicação minha e do Carlos para que a gente facilite e dê a chance para que isso possa acontecer.



Vocês trabalham oferecendo oficinas para as comunidades, como: Alimentos da Terra, Oficina de Brinquedos Populares, Cameloturgia, Pífano, Percussão e Bonecos. Essas oficinas são ministradas somente aqui no Cariri ou vocês oferecem essas oficinas pelos lugares por onde passam?
Como o grupo é enorme e foi crescendo cada vez mais, aconteceu uma conseqüência, que não foi somente a história de brincar, de estar em cena, mas fazer uma troca. Veio surgindo à história do alimento, do pão, das coisas que são esquecidas hoje como patrimônio cultural de um povo que é essa forma de se alimentar, esta forma de se vestir, as nossas músicas e as tradições. Tudo hoje se compra no supermercado e não é assim. Você pode pegar um milho verde, trazer para cá e fazer um bolo, você pode comprar a mandioca e fazer sua farinha dentro de casa. Mas, as pessoas perderam o vínculo com a Mãe Terra e com a natureza. A partir disso, nós desenvolvemos essas vivências e, onde estivermos e formos convidados, levamos, além de todos os espetáculos, as nossas vivências que são essas coisas ligadas aos alimentos, aos brinquedos populares, aos bonecos feitos com cabaça, bonecos de mamulengo e algumas técnicas circenses (a perna de pau, o malabares ou coisas mais simples de base de circo).

Ficamos bastante curiosos com esse termo Cameloturgia, o que seria?
A definição é do próprio Carlos. Um verdadeiro camelô tem todo o tempo, uma roda fechada em volta dele. Porque ali, ele quer vender um produto. Mas, para vender esse produto, ele vai falar da flora brasileira, dos animais e de outros tantos assuntos, até chegar na venda da banha do peixe-boi. E nisso, ele passa ali duas horas, três horas, quatro horas nesta roda fechada e ele fez o que tinha de fazer naquele momento. Ele passou uma comunicação, fez um diálogo com aquele público e vendeu a sua banha do peixe-boi. Então, essa linguagem foi transformada para dentro do nosso teatro. Então, tem que ser uma coisa muito verdadeira, tem que ser um diálogo muito intenso, por isso entrou essa pesquisa e essa inspiração no camelô. A Cameloturgia é a linguagem do camelô que a gente misturou à Dramaturgia, surgindo a Cameloturgia.

O espetáculo Os Afilhados do Padrinho é bem inusitado para o Carroça de Mamulengos. O que se vê é que esta montagem é bem diferente dos espetáculos com bonecos, como: Viva o Mamulengo; Seja Noite ou Seja Dia Viva o Palhaço Alegria e Histórias de Teatro e Circo. Como surgiu o espetáculo Os Afilhados do Padrinho?
Histórias de Teatro e Circo é uma brincadeira que representa toda a cristalização desses anos de história da gente. É tanto, que a burrinha está em cena, a cabritinha, o tamanduá, o veadinho, todos os personagens que trilharam nossa história junto conosco. O Seja Noite ou Seja Dia Viva o Palhaço Alegria remete a nossa origem, que era somente o Carlos e Eu brincando com esse boneco gigante pelas ruas e praças do Brasil. O Viva o Mamulengo já era anterior a tudo isso. Mas, hoje, o Viva o Mamulengo já tem a participação dos nossos filhos, são eles que tocam e acompanham esse espetáculo com a rabeca, o violão, o pífano e a percussão. E Os Afilhados do Padrinho surgiu, justamente, da necessidade de mostrar as composições que o Carlos tem e que são temas de boi, cirandas, baiões e marchas, juntamente com a vivência musical que a Maria trouxe para o Carroça de Mamulengos.



Neste espetáculo, vocês remetem, tanto ao Padre Cícero, como ao Cristo Redentor. Desde o início, vocês tiveram essa vontade de mostrar o Juazeiro como morada ou como pouso do Carroça de Mamulengos?
A cristalização deste espetáculo surgiu em 2005. Por conta, justamente, de uma viagem que fizemos à França. Nós queríamos ir à França levando toda a nossa estrutura de espetáculos e o nosso repertório musical. Então, levamos o Palhaço Alegria, o Mamulengo, a História de Teatro e Circo, as oficinas, as exposições de bonecos de cabaça e de pano. E, conseqüentemente, levamos a música do Brasil representada no espetáculo Os Afilhados do Padrinho. E como tudo o que a gente faz é simples e elaborado, nós construímos o cenário, o figurino e toda a estrutura de ensaio. E a idéia foi justamente essa: de mostrar a nossa origem e opção de vida de está morando e vivenciando no Cariri. Quisemos mostrar a nossa relação com o Padre Cícero e com o símbolo do Brasil, que é o Cristo Redentor no Rio Janeiro. De certa forma, temos um pezinho aqui e um pezinho no Sudeste.


Para finalizar. Existe uma frase de Carlos Gomide que afirma: “A arte surgiu para celebrar a fartura. Temos que produzir a abundância e compartilhar”. A que fartura vocês se referem?
Tem uma questão muito superior que nos guia; é uma frase de Jesus Cristo: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (JO – 10: 10). Jesus já falava isso e nós fomos testando na nossa pequenez fazer com que seja realidade. Não colocando os obstáculos na frente das questões biológicas e fazendo com que tudo isso atrapalhe a concretização dos nossos sonhos. Fazendo, realmente, o máximo possível para que isso se realize nas coisas simples das nossas vidas. É o que nós podemos fazer por nós mesmos. Então, por exemplo, aqui na comunidade do João Cabral, temos um trabalho vinculado à população, um trabalho pequenininho, mas que já está trazendo muitos frutos. Temos, em média, umas 150 pessoas que estão diretamente ligadas a nós, ou seja, crianças, adolescentes e mães de família que estão entendendo um pouquinho dessa questão maior que é o amor ao próximo, a relação com a Mãe Terra, a importância de cuidar das nossas crianças, a valorização dos nossos mestres e do nosso patrimônio imaterial. Além do cuidado com os nossos idosos. Porque quando se começa a trabalhar com a Cultura e a Arte estamos fazendo uma ponte para a cidadania.
Devemos tentar fazer com que essa vida seja em abundância e que todos se contagiem através da nossa esperança, da nossa presença, do nosso bom humor e da nossa energia positiva. Fazer com que essas pessoas cresçam na sua auto-estima, principalmente. Porque a partir do momento que você se reconhece como cidadão, como ser criativo, como ser transformador, você não vai se deixar ser engolido por qualquer coisa, você vai ter consciência e vai saber que é um ser humano e que precisa viver. Hoje, imprimimos os Conselhos Ecológicos do Padre Cícero, vamos nos manter firmes nesta postura. Não podemos sair dessa linha. Tem que ter essa firmeza de pensamento para que dentro desses conselhos, deste mestre, nós possamos buscar um pouco e falar para todo o mundo.




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