Cores, Ritmo e Dança



Fotos Rafael Vilarouca/ Franklin Lacerda


Dentre todas as manifestações culturais do Cariri, qual delas abordaremos? Todas têm o seu legado e contribuição, reconheço, mas qual delas ainda não foi explorada pelas páginas, lentes e microfones da mídia ávida por notícias? E, principalmente, quais destas ainda mantêm seu formato puro e íntegro das construções ancestrais?
Num primeiro momento esta decisão não foi fácil, mas bastou puxar um pouco pela memória para lembrar que de dentro de um dos bairros mais populares da cidade do Crato, brota a força de um dos grupos de maior representatividade da região, o Coco das Mulheres da Batateira.
O bairro Gisélia Pinheiro, conhecido como Batateira, é um dos lugares mais carentes da cidade do Crato. Como se encontra aos pés da rodovia CE 230 toda a estrutura do lugar é voltada para suprir as necessidades das pessoas e carretas que por ali passam diariamente. Por conta disso, criou-se certa marginalidade e prostituição que afeta diretamente os moradores do lugar. Pensando nisso, as várias manifestações culturais e aparelhos sociais existentes no local dão o tom de inclusão para jovens, adultos e idosos da comunidade.
Ao telefone marcamos a entrevista, numa manhã de domingo, com a Mestra do grupo, a senhora Edite Dias. No dia e horário combinados fomos ao encontro. Qual não foi a surpresa ao encontrar nossa entrevistada sentada em seu sofá saboreando a sua merecida manhã de descanso. Ao ver o carro, susto... A nossa anfitriã manda a frase: “Puxa, tinha esquecido que vocês vinham. Vocês me desculpam meus filhos?” Isto soou como um balde de água fria nos planos. Mas, antes que o nosso leitor pense que este esquecimento possa parecer desleixo, vale ressaltar que as Mulheres do Coco da Batateira são todas agricultoras e trabalham em suas roças para garantir o seu sustento diário e que entre idas e vindas de sol a sol essas senhoras guerreiras ainda encontram forças para dançar o Coco que, diga-se de passagem, provoca alegria, euforia e encantamento em quem vê.
O que nos pareceu de antemão um problema foi rapidamente solucionado pela Mestra que em questão de minutos reuniu ali na frente dos nossos olhos, seis senhorinhas idosas cheias de energia e disposição para nos oferecer uma das conversas mais agradáveis das entrevistas feitas para esta revista.
Todo mundo acredita que a dança e as músicas do Coco que conhecemos hoje surgiu em Pernambuco, isso graças à enorme popularidade que os artistas, cantores e compositores deste estado produziram, entre eles estão: Selma do Coco, Lia de Itamaracá e Zé Neguinho do Coco. Porém, para quem não conhece o ritmo e a dança, eles surgiram dos descendentes africanos e indígenas que viram no trabalho de quebra do coco de babaçu a inspiração para as danças e músicas desta manifestação popular. Há quem diga que apesar de mais freqüente no litoral, o Coco teria surgido no interior, provavelmente no Quilombo dos Palmares, a partir do ritmo em que os cocos eram quebrados para a retirada das amêndoas. A palavra Coco significa cabeça que é de onde vêm as músicas de letras simples. É uma dança de roda acompanhada de cantoria e executada em pares, fileiras ou círculos durante as festas populares.
O Coco da Mulheres da Batateira não data deste período. Ele teve início em 1979, no Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, na cidade do Crato, e o grande incentivador do surgimento do grupo foi o Mestre Eloi Teles que insistiu junto às mulheres que se reunissem e montassem uma apresentação para a semana do folclore desenvolvida na escola. Na época, apenas duas senhoras conheciam as toadas e as pisadas desse ritmo, mas o que era para ser um desafio transformou-se numa gostosa brincadeira que vive até hoje. “Na época ficou um grupo grande de mulheres, nós brincávamos em comemorações de dia de reis, renovações e festas juninas, além de fazermos ‘festinhas’ para nós mesmos”, conta Dona Edite Dias, Mestra do grupo.
A energia do Coco foi contagiando as mulheres de tal maneira que esta brincadeira passou a fazer parte do dia-a-dia dessas senhoras. As apresentações foram conseqüência desse desejo de estarem sempre juntas cantando e dançando o Coco, aliado a energia vibrante do ritmo. Coincidência ou não, as Mulheres do Coco conheceram uma das coordenadoras do Centro de Estudo do Menor e Integração na Comunidade – CEMIC que lhes falou sobre a formação do grupo, vestimentas e apresentações, além de expor propostas e explicações sobre a formação de grupos folclóricos, oferecendo-se para doar as vestimentas que usariam em suas apresentações. Da formação inicial, somente três mulheres ainda compõe o grupo, mas esta ideologia já se mostra latente com a formação de três grupos mirins que caminham entre o Maneiro Pau e o Coco, mostrando que a identidade cultural das crianças do bairro pode e deve ser incentivada.
“O Coco para nós que brincamos, representa muita coisa. Representa nós se valorizar, animar o nosso bairro que é muito esquecido e esquisito, pegar mais energia, porque a gente pega uma energia danada quando dançamos o Coco. Ás vezes, a gente esta meio baqueado (sic!) e quando dançamos o coco as coisas melhoram para todo mundo”, nos conta Terezinha de Lima, integrante do grupo.
Longe de ser um grupo famoso, o Coco das Mulheres da Batateira ainda acredita que possa realizar um dia o tão desejado sonho da gravação de um CD com suas músicas e como disse o velho poeta: “Sonho que se sonha junto é realidade”. Foi o que nos mostrou as senhorinhas que numa tarde de carnaval buscaram a inspiração das festas para brincar mais uma vez o seu precioso Coco e, neste momento, vimos que se houvessem mais vinte quatro horas, aquelas pequenas senhoras de tamanho, mas grandes de coração dançariam ali até não restar mais dúvidas de que o seu maior prazer é o Coco. E tome energia!


Contos e Encantos


Uma família, pai, mãe, oito filhos e um genro viajam o país levando em suas bagagens, além das caixas com bonecos, seus sorrisos, suas alegrias e brincadeiras.

Fotos Divulgação Carroça de Mamulengos


Viver e respirar arte faz parte da trajetória do grupo Carroça de Mamulengos. Esta trupe de saltimbancos formada por 11 integrantes estão na estrada desde a década de 80. O grupo composto por: atores-manipuladores de bonecos gigantes; músicos; palhaços; acrobatas e malabaristas em pernas-de-pau celebram por meio de poemas e canções, a cultura e arte brasileira.
No início era apenas Carlos Gomide e sua caixa de mamulengos. Em 1977 ele entrou para o grupo de teatro que coincidentemente chamava-se Carroça, dirigido por Humberto Pedrancini, e nele realizou alguns trabalhos com bonecos feitos de sucatas. Na época montou um espetáculo com textos de fábulas, já visualizando o teatro de bonecos como linguagem para o seu trabalho. Era o começo de uma vivência que se estenderia para outra geração. Somente na década de 80 quando foi morar em Brasília, conheceu Shirley França, sua atual companheira, surgindo deste encontro o Carroça de Mamulengos.
Desde o principio, a dupla, teve a intenção de projetar e realizar os sonhos de transformar a realidade pela arte, dar vida à vida, fazer teatro de rua e brincar. Simples, mas elaborado. Assim define Shirley quando se refere ao tratamento dado a toda composição de espetáculo do Carroça. Pois, por mais que tenha essa elaboração minuciosa, elas são tratadas com simplicidade e singeleza possibilitando uma interação profunda de coração com a platéia.

No surgimento do grupo Carroça, Carlos Gomide conviveu com grandes mestres, como: Os Irmãos Relâmpago, Chico de Daniel, Pedro Boca Rica, entre outros; além de aprofundar seu aprendizado com o mestre Antônio do Babau em Mari, na Paraíba. Qual a importância da companhia ter se aproximado desses mestres da cultura?
Na verdade, quando você faz uma opção de vida como essa, você pensa: Onde buscar esse conhecimento? Você vai as Universidades? as bibliotecas? Aos centros urbanos? Aonde, aonde? Não é muito raro que exista um nordestino, dentro de um centro urbano, lá escondidinho, tentando levar sua arte. Naturalmente isso está no interior do Brasil, onde as coisas acontecem, com mais facilidade nas cidades pequenas, onde a cultura popular pulsa, onde tem uma movimentação religiosa e uma resistência cultural. Então, a partir daí foi opção dele, e depois, conseqüentemente, a minha e dos meus filhos. Viver no meio dessa efervescência cultural, que está no interior do Brasil, seja em Goiás, nos conjuntos de Catira, com os Violeiros em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro com o Jongo

O grupo Carroça de Mamulengos escolheu o Cariri para fazer sua morada. Como vocês chegaram até esta região para trabalhar com Cultura Popular?

Quando eu conheci o Carlos, eu já tinha uma experiência com Teatro em Brasília. Só que era um teatro mais ligado ao palco italiano, a estrutura de texto, a exercícios de laboratórios, bem dentro da formação teatral convencional e acadêmica. Então, eu já estava na faculdade quando conheci o Carlos e eu fiz a opção de largar esse meio e saí com ele para viajar o Brasil, fazer outro tipo de faculdade. Um outro estudo que é de campo, conhecendo pessoas nessa vivência. E foi assim que nós saímos de Brasília, Carlos e Eu. Nós tivemos o intuito de vir justamente para o Cariri, por causa da relação com o Padre Cícero, as questões religiosas da região, dos movimentos sociais que aconteceram por aqui e dessa efervescência cultural que a gente sabia que existia. Quando chegamos em Fortaleza, pegamos um trem e viemos até o Crato. A princípio, a idéia era morar no Crato, mas quando conhecemos o Juazeiro, nos identificamos mais, pela questão populacional, por estar mais próximos destas pessoas mais simples. Conseqüentemente, viemos para ficar e fomos começar a vivenciar o que a gente sabia fazer.

Uma coisa que nos encantou bastante foi o fato de ser uma trupe numerosa, todos serem da mesma família e fazerem parte do mesmo contexto artístico e cultural que vocês vivenciam desde a década de 70. O surgimento dos personagens acontecia na medida em que os filhos vinham nascendo?
Nós nunca quisemos que as crianças ficassem em casa. Nem eu mesma, grávida ou por causa de ter menino pequeno, ficava em casa. Então, eu estava em todos os momentos do Carroça, seja ajudando nos mamulengos, trabalhando na rua, montando o Palhaço Alegria ou em cena até a hora de ter o neném. Quando tinha o neném, ficava num cantinho, tinha o resguardo normal e o Carlos continuava batalhando. A partir do momento que o neném crescia, ficava durinho um pouquinho, eu já estava na rua de novo rodando o chapéu e fazendo os espetáculos.
Quando a Maria completou dois anos, nós criamos para ela um personagem, que foi uma burrinha. Essa burrinha foi o marco, também, na história do Carroça. Porque essa mesma burrinha está em cena até hoje. Todos os filhos brincaram – a Maria, o Antônio, o Francisco, o João, o Pedro, o Matheus, a Luzia e a Isabel. Então, esse personagem já era uma força, porque a Maria não ficava assistindo; ela se sentia parte da brincadeira dos pais dela. Nós queríamos que fosse uma brincadeira para ela também. Logo em seguida, mesmo sem eu esperar, Papai do Céu mandou o Antônio para mim. Quando o Antônio cresceu, a Maria já estava maiorzinha e a burrinha ficou pequena para ela. Aí inventamos um cabritinho. Maria ficou brincando com o cabritinho e o Antônio ficou brincando na burrinha. Aí, nesse momento, foi interessante, porque eu comecei a orientar a Maria para a questão cênica, de como se comportar, de como falar alto e como se expressar diante dos espetáculos. Então, a Maria entrou em cena aos dois anos e hoje está com 23 anos, e nunca mais saiu de cena.
Em que momento vocês começaram a incorporar a seus espetáculos projetos de apoio cultural?
Os incentivos culturais mesmo, para ser sincera, na história da gente não chega a compor os dedos da mão esquerda. Então, foram pouquíssimos. Inclusive, nós não acreditamos nos incentivos culturais como profissões da verdadeira arte. Principalmente, porque nós estamos do lado dos mestres da Cultura Popular, nossos mestres anônimos, e estes mestres hoje estão morrendo à míngua e estão passando uma dificuldade muito grande por conta de não terem acesso, ainda real, a esses meios que estão estabelecidos no Brasil. Esses incentivos culturais ainda são para poucos, ainda são para aquelas pessoas informatizadas, aqueles que sabem fazer os formulários de preenchimento, que sabem entrar dentro dessas mamatas governamentais, destes meios burocráticos. Se você se vincular a um incentivo cultural, você tem que se vincular a uma série de questões, principalmente políticas.

Quem faz os figurinos e os cenários dos espetáculos?
Toda a confecção do material cênico do Carroça de Mamulengos passa pela gente. Os bonecos e o cenário. Agora, os figurinos, às vezes, precisam de algum corte e costura. Então, temos costureiras que nos ajudam na composição desses figurinos. Mas, toda a elaboração é feita por nós.

Em que momento a Música veio aparecer nos espetáculos do Carroça de Mamulengos?
Bom, aí entra a questão dos filhos. Porque nós sempre tivemos uma ligação com a Música, seja através de um pandeiro ou de uma caixinha que a gente tocava. Mas, a Maria cresceu e foi trilhando um caminho próprio, como também o Antônio e o Francisco. Já o Carlos e Eu nos ligamos ao teatro de bonecos. Então, a Maria desenvolveu esse lado musical e com ela veio à elaboração musical do grupo. Porque ela, dentro da estrutura familiar, é uma musicista. Ela optou por esse caminho. Ela me disse: - Olha mãe, eu não quero artes plásticas, nem teatro de bonecos. Eu estou em cena, gosto de representar, de ser artista e de cantar com o meu pai; mas, quero mesmo é tocar. Ela desenvolve a composição musical do grupo, ou seja, puxa todo mundo para entrar no tom e executa a direção musical do espetáculo. O Carlos, por outro lado, além de ser o artista plástico, na questão de composição dos bonecos, é também o compositor. Então, nesses anos de andanças, ele criou esse meio de ligação com o divino que é escrever. Ele escreve os temas e as poesias. Tanto que o CD Alumiação, que foi gravado na Paraíba, das vinte composições, doze são do Carlos e oito de domínio público.

Qual foi o ano de nascimento do CD Alumiação?
Foi há doze anos. Um CD que praticamente nós reimprimimos ele sempre. Hoje, nós já temos, mais ou menos, uma média de 16 mil cópias já distribuídas. Isso de mão em mão, doadas, presenteadas, de todo jeito. É um CD que vem trazendo histórias. Muitas crianças que escutaram pequenininhas já são pais. Os pais já passam para seus filhos e querem um novo CD, porque pretendem presentear os amigos ou os afilhados. É um CD que vai compondo a história. Agora, dessas músicas atuais do Carlos, que tem mais de cem composições, nós não gravamos mais nenhum disco. Então, a gente está sempre com esse sonho e esse projeto de criar com essas composições um disco, de repente até um disco duplo. Aí, seria um disco completamente diferente do CD Alumiação, que basicamente é uma história de teatro e circo, o tema dos personagens e as canções de palhaço. Nessa nova fase, esse novo disco que o Carroça pretende fazer, já vai entrar baião, xote, xaxado, marchinha e valsa.

Todos os filhos iniciaram na música de forma autodidata?
O incentivo é autodidata, porque a partir do momento que eu optei viver de arte com o meu companheiro, o nosso meio sempre é voltado pra isso. Nós nunca estamos do lado convencional da vida. A gente vai pelas veredas e pelos caminhos mais estreitos. Por isso, sempre conhecemos músicos, artistas, pessoas que a gente encontra na brincadeira e simpatiza, amigos que a gente vai encontrando e formando essa teia. É essa cadeia que vai formando e sustentando a nossa família. Sustentando os nossos filhos e ajudando na educação deles e nos alimentando desse ideal de vida. Então, por exemplo, estávamos em Goiás, em Águas Lindas, o que há de melhor na história da Viola do Estado, ou seja, o Roberto Correia já estava lá nos acompanhando e sendo nosso amigo. Ele estava com a gente no meio da convivência e a Maria vivenciando todos os ensinamentos com ele. Em Campinas (SP), nós aprendemos muito com o Paulo Freire e a companheira dele. É a possibilidade de nossos filhos estarem nessa convivência harmônica e de amizade, principalmente de amizade sincera, que ampara a gente neste Brasil a fora e aqui no Cariri do mesmo jeito, que podemos proporcionar e vivenciar este aprendizado junto com todos esses amigos. A partir daí, é um pulinho para que as crianças tenham suas vivências naturais e façam isso cotidianamente. Eles não precisam acordar de manhã e ir para uma universidade estudar isso, eles estão vivendo no café da manhã, no almoço, no jantar, na saída, em todo lugar, ou seja, a Música e a Arte. A gente respira e vive Arte em todos os momentos da nossa vida. Isso facilita essa história de sermos autodidatas, de estar buscando esse caminho. É claro que tem que ter um pouquinho de pulso firme, de dedicação minha e do Carlos para que a gente facilite e dê a chance para que isso possa acontecer.



Vocês trabalham oferecendo oficinas para as comunidades, como: Alimentos da Terra, Oficina de Brinquedos Populares, Cameloturgia, Pífano, Percussão e Bonecos. Essas oficinas são ministradas somente aqui no Cariri ou vocês oferecem essas oficinas pelos lugares por onde passam?
Como o grupo é enorme e foi crescendo cada vez mais, aconteceu uma conseqüência, que não foi somente a história de brincar, de estar em cena, mas fazer uma troca. Veio surgindo à história do alimento, do pão, das coisas que são esquecidas hoje como patrimônio cultural de um povo que é essa forma de se alimentar, esta forma de se vestir, as nossas músicas e as tradições. Tudo hoje se compra no supermercado e não é assim. Você pode pegar um milho verde, trazer para cá e fazer um bolo, você pode comprar a mandioca e fazer sua farinha dentro de casa. Mas, as pessoas perderam o vínculo com a Mãe Terra e com a natureza. A partir disso, nós desenvolvemos essas vivências e, onde estivermos e formos convidados, levamos, além de todos os espetáculos, as nossas vivências que são essas coisas ligadas aos alimentos, aos brinquedos populares, aos bonecos feitos com cabaça, bonecos de mamulengo e algumas técnicas circenses (a perna de pau, o malabares ou coisas mais simples de base de circo).

Ficamos bastante curiosos com esse termo Cameloturgia, o que seria?
A definição é do próprio Carlos. Um verdadeiro camelô tem todo o tempo, uma roda fechada em volta dele. Porque ali, ele quer vender um produto. Mas, para vender esse produto, ele vai falar da flora brasileira, dos animais e de outros tantos assuntos, até chegar na venda da banha do peixe-boi. E nisso, ele passa ali duas horas, três horas, quatro horas nesta roda fechada e ele fez o que tinha de fazer naquele momento. Ele passou uma comunicação, fez um diálogo com aquele público e vendeu a sua banha do peixe-boi. Então, essa linguagem foi transformada para dentro do nosso teatro. Então, tem que ser uma coisa muito verdadeira, tem que ser um diálogo muito intenso, por isso entrou essa pesquisa e essa inspiração no camelô. A Cameloturgia é a linguagem do camelô que a gente misturou à Dramaturgia, surgindo a Cameloturgia.

O espetáculo Os Afilhados do Padrinho é bem inusitado para o Carroça de Mamulengos. O que se vê é que esta montagem é bem diferente dos espetáculos com bonecos, como: Viva o Mamulengo; Seja Noite ou Seja Dia Viva o Palhaço Alegria e Histórias de Teatro e Circo. Como surgiu o espetáculo Os Afilhados do Padrinho?
Histórias de Teatro e Circo é uma brincadeira que representa toda a cristalização desses anos de história da gente. É tanto, que a burrinha está em cena, a cabritinha, o tamanduá, o veadinho, todos os personagens que trilharam nossa história junto conosco. O Seja Noite ou Seja Dia Viva o Palhaço Alegria remete a nossa origem, que era somente o Carlos e Eu brincando com esse boneco gigante pelas ruas e praças do Brasil. O Viva o Mamulengo já era anterior a tudo isso. Mas, hoje, o Viva o Mamulengo já tem a participação dos nossos filhos, são eles que tocam e acompanham esse espetáculo com a rabeca, o violão, o pífano e a percussão. E Os Afilhados do Padrinho surgiu, justamente, da necessidade de mostrar as composições que o Carlos tem e que são temas de boi, cirandas, baiões e marchas, juntamente com a vivência musical que a Maria trouxe para o Carroça de Mamulengos.



Neste espetáculo, vocês remetem, tanto ao Padre Cícero, como ao Cristo Redentor. Desde o início, vocês tiveram essa vontade de mostrar o Juazeiro como morada ou como pouso do Carroça de Mamulengos?
A cristalização deste espetáculo surgiu em 2005. Por conta, justamente, de uma viagem que fizemos à França. Nós queríamos ir à França levando toda a nossa estrutura de espetáculos e o nosso repertório musical. Então, levamos o Palhaço Alegria, o Mamulengo, a História de Teatro e Circo, as oficinas, as exposições de bonecos de cabaça e de pano. E, conseqüentemente, levamos a música do Brasil representada no espetáculo Os Afilhados do Padrinho. E como tudo o que a gente faz é simples e elaborado, nós construímos o cenário, o figurino e toda a estrutura de ensaio. E a idéia foi justamente essa: de mostrar a nossa origem e opção de vida de está morando e vivenciando no Cariri. Quisemos mostrar a nossa relação com o Padre Cícero e com o símbolo do Brasil, que é o Cristo Redentor no Rio Janeiro. De certa forma, temos um pezinho aqui e um pezinho no Sudeste.


Para finalizar. Existe uma frase de Carlos Gomide que afirma: “A arte surgiu para celebrar a fartura. Temos que produzir a abundância e compartilhar”. A que fartura vocês se referem?
Tem uma questão muito superior que nos guia; é uma frase de Jesus Cristo: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (JO – 10: 10). Jesus já falava isso e nós fomos testando na nossa pequenez fazer com que seja realidade. Não colocando os obstáculos na frente das questões biológicas e fazendo com que tudo isso atrapalhe a concretização dos nossos sonhos. Fazendo, realmente, o máximo possível para que isso se realize nas coisas simples das nossas vidas. É o que nós podemos fazer por nós mesmos. Então, por exemplo, aqui na comunidade do João Cabral, temos um trabalho vinculado à população, um trabalho pequenininho, mas que já está trazendo muitos frutos. Temos, em média, umas 150 pessoas que estão diretamente ligadas a nós, ou seja, crianças, adolescentes e mães de família que estão entendendo um pouquinho dessa questão maior que é o amor ao próximo, a relação com a Mãe Terra, a importância de cuidar das nossas crianças, a valorização dos nossos mestres e do nosso patrimônio imaterial. Além do cuidado com os nossos idosos. Porque quando se começa a trabalhar com a Cultura e a Arte estamos fazendo uma ponte para a cidadania.
Devemos tentar fazer com que essa vida seja em abundância e que todos se contagiem através da nossa esperança, da nossa presença, do nosso bom humor e da nossa energia positiva. Fazer com que essas pessoas cresçam na sua auto-estima, principalmente. Porque a partir do momento que você se reconhece como cidadão, como ser criativo, como ser transformador, você não vai se deixar ser engolido por qualquer coisa, você vai ter consciência e vai saber que é um ser humano e que precisa viver. Hoje, imprimimos os Conselhos Ecológicos do Padre Cícero, vamos nos manter firmes nesta postura. Não podemos sair dessa linha. Tem que ter essa firmeza de pensamento para que dentro desses conselhos, deste mestre, nós possamos buscar um pouco e falar para todo o mundo.




Jogue a arte no ventilador



O CARIRI se mostra PLURAL em suas manifestações culturais e artísticas, são muitas as expressões latentes para pesquisar, procurar e registrar que tudo se torna minuciosamente mágico e lúdico. A todo o momento, o processo de construção da revista é guiado pelo amor de fazer arte e pelo fluxo de idéias que vão sendo apresentadas no decorrer da construção deste veículo. Apesar de complexo, a paixão de fazer este canal de divulgação da arte supera todos os obstáculos que vão se mostrando pelo caminho. Há muito a DIZER, SABER, COLHER e RECOLHER.
O MUNDO CHAMADO CARIRI é amplo demais para ficar somente em uma. Durante muito tempo pensamos que a ARTE DO CARIRI estava esquecida e fora do eixo de divulgação que tanto sonhávamos para a nossa região. Ao surgir à REVISTA ARTEPLURAL, começamos a pincelar vertentes de uma região que se transforma a cada nova estação. São muitos frutos maduros escondidos em busca de alguém que os procure para colher.
Por isso nos propusemos a fazê-la, para LAPIDAR de forma profunda todas as matérias que gostaríamos que ilustrassem estas páginas de forma a contribuir para a divulgação de algumas MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS da região e buscando um pouco da essência do ser CARIRI, tão múltiplo em suas FACETAS CULTURAIS.
Para quem nunca conheceu a Região do Cariri, um conselho, permita-se vivenciar TATO, OLFATO, PALADAR, VISÃO E AUDIÇÃO.
Na verdade, O CARIRI SÃO VÁRIOS CARIRIS e como tal mostra-se maravilhoso e multicultural. VENTOS BONS sempre hão de soprar, mesmo que artificiais ou naturais, espalhando um pouco de BRILHO E COR por onde passarem e não importa se neste momento os ventos sopram no CEARÁ ou PARAÍBA, o importante é que eles sabem exatamente aonde querem chegar.

XILOGravura


Foi em 1999 que Maércio teve seu primeiro contato com a Xilogravura, nesta ocasião, ele talhou esse trabalho usando uma faca e uma tábua que ganhou do poeta e gráfico, Luciano Carneiro. Esta Xilogravura representando a fachada do Seminário São José, compunha seu livreto de Cordel “Breve histórico da fundação do Seminário São José do Crato”. “Apesar de muito grosseiro, o fato de eu “ter aprendido” a fazer xilogravura facilitava o trabalho na gráfica, pois não eram tão fáceis as encomendas com os gravadores de Juazeiro do Norte”, lembra o artista. Na época o único xilógrafo residente em Crato era Walderêdo Gonçalves, mas já não estava trabalhando, devido à idade avançada e os problemas na visão. Um outro xilógrafo chamado Geraldo Maranhão também fazia gravuras para a Academia, mas morava em Santana do Cariri. Então, Maércio, passou a receber encomendas da gráfica “Coisas do meu sertão” pertencente à Academia dos Cordelistas do Crato, o qual prestou serviço como xilógrafo de capa por um ano e meio.


O aprendizado se deu ao longo de anos. No princípio o trabalho de Maércio era feito as pressas, pois além de xilógrafo ele ensinava Filosofia no Seminário São José além de estudar letras na Universidade Regional do cariri – URCA, restando pouco tempo para se dedicar a xilogravura. Admitindo que o tempo fosse minguado, em 2000, ele começou a trabalhar junto com Carlos Henrique que segundo o artista: “é muito habilidoso na escultura e no trato com as madeiras em geral. Dei-lhe apenas algumas dicas, entre as quais a de que a tábua deveria ser uma espécie de carimbo”. Seu trabalho foi logo aceito com entusiasmo. Foi aí que o artista descobriu que uma pequena xilogravura de capa de cordel poderia tomar outros rumos mais detalhados.


Carlos Henrique - CH desenvolveu ferramentas de corte mais apropriadas, deu melhor atenção ao lixamento da madeira, enfatizou o corte preciso e nítido, e isso tudo resultava numa xilogravura que embelezava as capas de cordel. “Então, durante muitos sábados, o dia todo, em sua simplória oficina, tomei valiosas lições de CH, e sob a orientação dele comecei a preparar matrizes de tamanho grande. Mas para atingir o que eu tinha em mente, eu tive de me afastar em alguns pontos dos ensinamentos de CH. Mas sem esse tempo de aprendizado junto a esse artista, meu trabalho não seria possível”, conta Maércio. Durante um tempo o artista chegou a perder o interesse na xilogravura e somente em 2005, através de algumas leituras, tomou consciência da grandeza dessa arte, conhecendo os trabalhos de Alberto Dürer e as gravuras feitas sobre os desenhos de Gustave Doré. Assim ele decidiu se entregar ao aperfeiçoamento dessa técnica.


Para Maércio tudo começou com o cordel. Antes de entrar na arte da xilogravura, vários artistas gravadores arriscam escrever cordéis. Com sucesso, diga-se de passagem. Com o artista Maércio Lopes isso não poderia ser diferente. De 99 para cá, publicou dez cordéis e como membro da Academia dos Cordelistas do Crato assume essa literatura como parte da missão cultural que desenvolve. “Tanto assim, que uma das minhas gravuras, a que eu acho mais significativa, tem por tema a leitura e o cordel”.

O artista participa de coletivas desde 2007. A primeira foi a coletiva “Incisão”, do Centro Cultural Banco do Nordeste - CCBNB, em Juazeiro do Norte e a Mostra “O Cariri é aqui”, em Fortaleza, no mesmo ano. Maércio também Expôs com Carlos Henrique e Guto Bitu, no Maria Café, em Crato e na Mostra Desusa de Artes Visuais, da Universidade Regional do Cariri - URCA, trabalho este intitulado “Ao Senhor das Nações”, que inclusive está no cartaz e panfleto do evento.

Somente este ano, Maércio conquistou seu reconhecido destaque em duas exposições individuais. A primeira, nos meses de maio e junho, no Espaço Cultural Coletivo Malungo que reuniu dez peças numa exposição “Cenas de um Cariri”. E a segunda chamada “Impressão de Mundos” que reúne 35 xilogravuras e estão em exposição durante este mês de julho na Galeria do SESC-Crato. Esta mostra faz parte do Projeto Moldura Itinerante desenvolvido pelo Instituto Ecológico e Cultural Martins Filho – IEC, vinculado a Pró-Reitoria de Extensão da URCA e consiste no empréstimo de molduras para expor obras de artes visuais.



O que caracteriza a gravura do artista é evidente: o cuidado dado aos detalhes. O artista procura convencer o expectador de que o detalhe é também essencial. Com isso, Maércio deseja causar o deslumbramento, a interrogação, o espanto diante de uma coisa nova e considera a sua arte apologética. Maércio preocupa-se em demonstrar que a gravura em madeira pode ir por caminhos surpreendentes. “Quero que a xilogravura interesse a mais pessoas, cujo gosto não se satisfaz com o nosso modelo tradicional, que, aliás, gosto e admiro. Mas a madeira, no sentido literal, é a “tábula rasa”, onde se pode gravar o que se desejar e atende ao projeto tanto de uma xilogravura clássica como aos requisitos da arte contemporânea”.

Lirismo...

Escola de música da região serrana do Crato prepara jovens talentos para brilhar em orquestras pelo país.



Quarenta anos é o espaço de construção de um sonho que se iniciou em 1967. Hoje seu benfeitor com 90 anos de idade enxerga a juventude e a serenidade de quem construiu com muita luta um trabalho solidário para a criação de uma identidade cultural e musical na comunidade do Belmonte, região serrana do Crato. Inicialmente, a escola recebeu o nome de Escola de Educação Artística Heitor Villa Lobos. Posteriormente, Escola Lírica do Belmonte.
Ainda padre, em 1948, o Monsenhor Ágio era professor de música do Seminário São José, em Crato. Foi nesta época que despertou o desejo de desenvolver um trabalho de música em comunidades camponesas. “Comecei a sonhar e a pensar num trabalho rural em contato com o povo simples”. Seu sonho se fortificou ao ver um grupo de jovens camponeses compondo um singelo conjunto de vozes, que improvisava, nos mutirões, por ocasião da colheita do café, do arroz ou do algodão. “Impressionante, entre os trabalhadores jovens, existia afinação perfeita na melodia e muita harmonia, não só nas vozes, mas também no convívio alegre ente si”, recorda Ágio.
Depois de alguns anos, Padre Ágio foi passar uma temporada na residência das Irmãs de Santa Teresa e lá começou a concretizar seu projeto. Nesta mesma época ele se dedicou também à faculdade de filosofia e a procura incessante de um terreno, ali próximo, para realizar seu sonho de ensinar e orientar os jovens camponeses para música. De três alunos, considerados músicos natos, foi montado um conjunto musical chamado Villa-Lobos que contava com: violão, violoncelo, violino e sanfona conseguidos através de doações. E, Logo depois este trio se transformou em sexteto proporcionando a partir daí uma longa caminhada de cultivo na arte musical nesta comunidade rural.
Somente em 1967, Ágio ouve através de um anúncio pela rádio que existe uma casa no distrito do Belmonte que está à venda. “No mesmo dia, tomei o transporte coletivo em direção ao sítio Belmonte. Tratava-se de uma residência, cuja frente e laterais eram de alvenaria, solidamente construída, e o fundo e seus encarregados, porém, eram de taipa.” Não foi nesta ocasião que o Monsenhor comprou à casa, na época o pagamento seria à vista, impossibilitando a compra. Somente depois de alguns meses esta casa pode ser comprada. Naquele dia e, a partir dele, estava iniciando uma longa jornada com a comunidade do Belmonte ou como o padre mesmo diz: “Sua Missão”.
Hoje a escola conta com 200 alunos distribuidos em três turnos e com aulas teoricas e práticas da teoria musical. “Qualquer pessoa pode ser aluno da Sociedade Lírica do Belmonte - SOLIBEL, a única exigência é que este aluno esteja matriculado em escolas regulares. A prioridade é para a comunidade do Belmonte, mas temos alunos de toda parte da Região.” nos conta o maestro Felipe da Silva atual regente e diretor da escola.
Basicamente a SOLIBEL trabalha com teoria musical, mas houve tentativas de inserção de novos cursos para as crianças. Entre estes, mais recentemente aconteceu à oficina de teatro, entre outras intenções de montar uma escola de informática para inserir os jovens no mundo digital.
A verdadeira intenção da escola é despertar na criança e no jovem seus interesses pela cultura, trazendo-os para si sensações de pertença a um ambiente voltado à música e as artes de uma maneira geral. As sensibilidades despertadas neles pelas aulas da SOLIBEL revelam para o espaço poético e lírico, jovens talentos. É o caso do Carlos Rafael, um violinista de 12 anos, filho de pequenos agricultores do Crato que toca Bach, Mozart e Corelli, e também canções populares como "Mulher Rendeira" e "Luar do Sertão".
Em fevereiro deste ano houve a comemoração dos noventa anos do Monsenhor Ágio com o lançamento de um livro e um cd com as músicas do Padre David, irmão do Monsenhor que durante anos ajudou na orientação e na construção dessa escola. Oferecendo para os alunos aulas de música. Este cd é o primeiro trabalho registrado da orquestra e que teve duração de um ano, desde a idéia até o produto pronto. “Nesta festa reunimos os alunos e os ex-alunos, além de pessoas que de alguma forma contribuíram para SOLIBEL.” Comenta o maestro.
Apesar de seus 90 anos o Monsenhor Ágio ainda encontra forças para lecionar música aos seus alunos, além de publicar alguns livros sobre a história da SOLIBEL. A firmeza encontrada vem de uma disciplina árdua de caminhadas e refeições balanceadas. Mostrando que a força nunca seca e que a formação de multiplicadores é somente um passo de sua longa e iluminada jornada. Assim é o Padre Ágio nas palavras de Josely Timóteo: “Não é um ser opaco, acomodado às coisas fáceis da vida, mas alguém que luta porque acredita num mundo melhor, mais espiritual, mais humano, menos materialista e, principalmente, mais artístico”.

Olhares - Gente


Reunidos na ArtePlural, três fotógrafos que representam bem o Cariri. Seus enfoques ou enquadramentos estão nas pessoas.



“Gosto de fotografar gente. Não sei fotografar natureza, bicho, objetos. Meu lance é gente mesmo. Tanto gosto de produzir a cena para fotografar, como também gosto de chegar e ninguém me notar, para poder compor a foto. Na fotografia o dedo tem que ser tão rápido quando o olho. Em minha fotografia faltam pedaços, mas eles estão justificados dentro do retângulo. Eles têm uma organização, existe um corte estético. O meu enquadramento é bem agressivo e o que percebo é que faço os corte estéticos dentro de um equilíbrio. Neste tipo de foto que eu apresento, o espectador pode criar o restante da foto. Uma mente inteligente cria e não sente falta. Isso é o que a estética pode trazer”.
Allan Bastos



“Eu não consigo fotografar apenas com o olhar. Eu fotografo com todos os membros do meu corpo. O sentimento me leva a isso. Ainda adolescente, me encantei com as romarias, achava tudo aquilo muito louco, estranho e pensava em fotografar, mas nunca fotografava, apenas fazia fotografias de família. Gosto de fotografar o ser humano. Por isso, quando eu dei o meu primeiro “click” foi exatamente fotografando uma mulher. Fazendo a expressão de uma senhora. “As expressões das pessoas é o que me chama mais a atenção”.
Nívea Uchôa




“A fotografia veio à mim. Eu sou um fotógrafo plural, como é o propósito da revista. O que se apresenta de tema diante de mim,naquele momento, eu fotografo. Porque o fotógrafo deve ir em busca da imagem que se apresenta, seja uma paisagem, um contexto social, a fotografia documental, a fotografia jornalística ou uma fotografia reflexiva. Eu me desvinculei do parâmetro de ser fotógrafo de um tema só. As imagens, elas sim, se apresentam”.
Pachelly Jamacaru

Um tanto de lucidez


A primeira coisa que se vê são retratos, quadros, miniaturas, uma infinidade de objetos santos e mais um tanto de bom humor. No meio, uma senhora idosa com seus 92 anos de pura vivência e muita disposição para conversar.
Assunção Gonçalves passou sua vida em busca da arte de todas as maneiras. Pintora, bordadeira e culinarista é apenas uma amostra do seu poder de síntese, ante as posibilidades artísticas existentes na região. Dona de um carisma inconfundível, desde cedo começou a pintar, quando ainda era menina e não parou mais. Suas obras podem ser encontradas desde as casas da região até países que a própria artista desconhece.
Em sua simplicidade, Assunção define sua obra como “garranchos que o povo dizia que estava ótimo”. Distante disso, pode-se observar uma artista autêntica da região que retrata em suas telas aspectos cotidianos de uma terra que ela se acostumou a ver em suas andanças e na vida percorrida no Cariri.
Na mesma parede repleta de telas pintadas e fotografias, existe uma pintura de Nossa Senhora de Fátima, que foi produzida logo após um sonho da artista: “Vinha uma bola branca que rolava, rolava e pousava nesta casinha que ficava enfrente a uma laranjeira que tinha aqui no quintal. Depois ela se transformava em Nossa Senhora de Fátima. Acordei, acendi o candeeiro, peguei a tela e fui pintar o sonho, seis horas depois eu estava com a tela pronta para ir para procissão”, lembra a artista, imprimindo um pouco de nostalgia ao depoimento.
Como temática e inspiração, Assunção Gonçalves, buscou reproduzir em suas telas a cidade de Juazeiro do Norte, imagens sacras e pessoas que fossem bonitas. Isso graças ao seu convívo imediato com a cidade que tanto ama e a figura do Padre Cícero. Com ajuda de uma companheira de bordado, lembrou que pintou até seus 70 anos.
Há 22 anos, Assunção Gonçalves não pinta mais. Teve problemas alérgicos às tintas que usava para compor a pintura. A pintura que retrata os três Juazeiros, foi reproduzida várias vezes, porém como a artista diz: “pintei muitas vezes, mas nunca igual ao anterior”.
Assunção fala de sua vida como um livro aberto. “Sou avó, bisavó e mais um bocado de coisas”, conta.
Em 2007, a Secretaria de Cultura e Turismo do Ceará – SECULT, ofereceu a Assunção o título de Tesouro Vivo da Cultura Cearense pelo conjunto de sua obra reconhecida por dois lados: o artesão, com a confecção de bordados e rendas; e as artes plásticas, através da pintura.
A impressão vivida por esta grande artista da região deixa claro o quanto já evoluimos em nossa breve existência na Terra. Incomparável no desprendimento com os fatos, Assunção deixou a mostra um tanto de sua vivência nos rumos artísticos da região. Mas, o melhor de tudo isso é a marca gravada em nossa lembrança de toda a cultura observada através do olhar de Assunção. Muito do que ela viveu não pôde ser lembrado no imediato momento de nossa entrevista, mas tudo o que vemos e ouvimos estava impregnado de uma incrível lucidez.

Centenário de Patativa do Assaré

“Digo e não peço segredo..."


Por Arethusa Fernandes


A literatura oral passa pelo leito da memória, desaguando em gerações posteriores, herdeiras de uma tradição rica em significados culturais. Distante do âmbito urbano, poemas e histórias eram contados nos alpendres das casas, sob a luz da lamparina, ocupando o lugar que as novelas ocupam hoje, transportando pessoas para o mundo de fantasia, do imaginário popular, fazendo com que elas esquecessem a peleja diária da vida sofrida do sertão.
E é nesse ambiente que Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, cresceu e desenvolveu seu talento, escutando seu irmão, que lia cordéis. Com 13 anos de idade, Antônio já fazia versos em festas juninas e religiosas locais e aos 16 comprou sua primeira viola, com o dinheiro da venda de uma ovelha.
Patativa é um pássaro típico da região nordestina, de penas acinzentadas, conhecido por emitir um canto enternecedor. Quando Antônio Gonçalves começou a despontar como poeta, muitos cantadores recebiam essa denominação como analogia à ave, por isso ele adicionou ao Patativa, o nome de sua cidade, para melhor ser identificado. Antônio Gonçalves nasceu em 5 de março de 1909, na propriedade rural Serra de Santana, situada no município de Assaré, ao sul do Ceará, lugar onde amava e nunca conseguiu se afastar por muito tempo (apesar de sua projeção nacional e internacional), e onde morreu, no dia 8 julho de 2002.
Esse ano, o município de Assaré deu inicio, de 01 a 05 de março, às comemorações do centenário de Patativa, em 2009. Os festejos que já aconteciam, anualmente, para comemorar a data de nascimento do poeta, agora serão realizados todo dia 05 de cada mês, até março do próximo ano, em praça pública, com teatro, música e diversas manifestações culturais. O intuito da Secretaria de Cultura Municipal, de acordo com a filha de Patativa, e uma das diretoras do Memorial Patativa do Assaré é preservar a história do poeta e divulgar seus versos, fazendo com que novos pesquisadores, jovens e crianças conheçam sua obra.
Segundo o pesquisador francês, Raymond Cantel, que estuda literatura de cordel, e percorre o Brasil desde 1959, em busca dos textos de repentistas, a designação “‘Poesia Popular’” é freqüentemente usada com uma errônea conotação pejorativa; sendo considerada de menor qualidade em comparação com a Literatura Clássica, porque subentende-se que os autores da Literatura dita Popular, são ingênuos, “bonachões” e suas obras são construídas com um “vocabulário pobre” e limitações estéticas. Cantel afirma que Patativa do Assaré surge como um dos poetas que desmontam essa concepção, revelando-se um homem de plena sabedoria, pois ele sabia, como ninguém, retratar a realidade de sua gente, porque era um deles. Por essa razão, para muitos estudiosos, Patativa é considerado o poeta que melhor soube transmitir em versos e prosa os contrastes do sertão nordestino. Como Patativa mesmo dizia: “para ser poeta basta no mês de maio, recolher um poema em cada flor brotada nas árvores do seu sertão”.
Patativa do Assaré foi, e ainda continua sendo, objeto de estudo para muitos pesquisadores, em dissertações, teses, e inclusive em Sorbone, na França, onde está incluído na disciplina Literatura Popular Universal.
Embora tenha ido à escola por apenas seis meses, e com uma visão debilitada, pois era cego de um olho, Patativa leu a obra inteira, Os Lusiadas, de Luís Vaz de Camões, confessando achar um tanto quanto complicado, mas seu encanto ocorreu por conta da estrutura dos versos camonianos. Patativa do Assaré também era leitor de jornais e revistas, o que provavelmente tenha lhe conferido uma leitura de mundo crítica, que muitos alfabetizados não têm.
Seus versos falavam sobre a injustiça social contida no país que ele demarcava e denominava de Dois Brasis, o do pobre e do rico. Elemento que pode ser notado até mesmo no poema A Morte de Nanã, dedicado a sua filha, que morreu de desnutrição aos 8 anos de idade. Patativa do Assaré tinha consciência que ela não era a única criança vítima da opressão, do descaso, pois o poema representa o amor puro entre pai e filha, em contraste com a ganância dos poderosos que, segundo Patativa, não resolvem o problema da seca porque não lhes convêm; por falta de políticas públicas eficientes.
Triste Partida, consagrada na voz de Luíz Gonzaga, se tornou o hino do sertanejo retirante, que se vê perdido em uma terra distante, em um mundo que não lhe pertence, em uma cidade estranha, de rostos estranhos, de costumes diversos e tão diferente do seu saudoso sertão.O Centenário do poeta é muito significativo, porque homenageia um homem que permanece vivo, ecoando seu canto; além de promover a propagação de seus versos, fazendo com que eles sejam conhecidos por novas gerações e que se perpetue no cotidiano, da mesma forma que acontecia com a rodada de histórias contadas nos alpendres e terreiros das casas, dos casebres e dos casarões deste sertão repleto de aves graciosas. Vamos sim, comemorar cem anos de Patativa, porque sua obra continua atual. Afinal, os problemas que ele descreveu persistem, e não podem ser esquecidos. Patativa precisa ser lembrado, lido e discutido, nos colégios, nas universidades, nas bibliotecas, nas praças e na mídia para aprendermos com um sábio que pouco freqüentou a escola, mas foi doutor em política, sociologia, psicologia... Foi doutor da vida.




Parece coisa de cinema: e é



Zé Sozinho saiu nordeste afora exibindo filmes e fazendo graça


Por Mariana Albanese
Fotos Allan Bastos


Seu Zé vem da linhagem dos Sozinhos. Herdou o apelido da mãe, Maria, que criou quatro filhos sem ajuda do pai. O menino José Raimundo, que nunca gostou de conversa besta, sentava isolado na escola, e Zé Sozinho ficou.
Solitário, saiu aos 12 anos de Caririaçu, cidade serrana do sertão cearense, rumo a Fortaleza, onde encontrou o cinema por companheiro. Subiu em um caminhão de rapadura rumo à Fortaleza, onde no Cine Marambá, em Parangaba, em 1954, viu seu primeiro filme. "Um daqueles americanos, que estava fazendo sucesso", relembra.
Já de volta ao sertão, começou a ajudar alguns mambembes que passavam pela cidade. Sua missão era ajustar a energia a gerador: ligando o projetor, as casas se apagavam. Mas foi no Círculo Operário de Caririaçu, já rapazote, que passou a exibir ele mesmo os filmes. Ali começou a entender o que o povo gosta, e a criar suas artimanhas para entreter.
Quando conseguiu o primeiro projetor, em 1970, aos 28 anos, ganhou o mundo - e perdeu a mulher. Por causa das viagens, que duravam até três meses, a esposa, que hoje mora em Cajazeiras, Paraíba, desenvolveu uma aversão por cinema: "Ela diz que cinema só serviu pra encher ela de filhos. Porque eu viajava, voltava, fazia um filho e viajava de novo". Foram cinco, no total. Hoje, uma filha e alguns netos ocupam, ao menos em fotografia, a parede da minúscula casa em que vive. Chão de terra, cadeiras empilhadas, projetor antigo, data show, telão e cartazes dão um contraste sem fim ao espaço escuro e úmido, o que preocupa Seu Zé. Afinal, é ali que ele guarda sua maior preciosidade: os filmes em VHS e DVD, essencialmente de dois gêneros: luta e terror, ou "karatê e vampiro", como ele descreve. Dos filmes de luta, gosta dos autênticos: "Jack Chan é uma mentira grande, prefiro os de Bruce Lee".
Nunca produziu um filme, mas fez suas edições. Se exibia um título duas vezes na mesma cidade, era preciso mudar o desfecho. "O único filme em que o artista morre no final e os cabra não acham ruim é o de Jesus". Mas nem este escapou. Em certa data, misturou a Paixão de Cristo com pedaços do Zorro. Houve surpresa do público diante dos homens armados. Seu Zé justificou: "são os amigos de Jesus que vieram ajudar ele".
Conta também de quando passou uma série de filmes sobre Sansão e Dalila. O povo reclamou. No dia seguinte, estampou no cartaz: "Hoje, Nem Sansão, Nem Dalila". Para decepção dos que esperavam assistir o filme com Oscarito, a atração da noite foi a dupla O Gordo e o Magro.
Há cerca de dois anos, o exibidor solitário recebeu do Centro Cultural Banco do Nordeste uma ajuda preciosa: equipamento de projeção completo, no valor de 18 mil reais. O vídeo da cerimônia de entrega ele exibe com orgulho no pequeno televisor do espaço que mora. Não chama de casa, diz que está ali provisoriamente, até conseguir sair em viagem. O contrato com o BNB lhe pede presença semanal, para exibição de um filme escolhido pela instituição. Por essas ironias da vida, nunca passou em sua cidade o documentário feito por Adriano Lima, sobre sua trajetória. Cine Zé Sozinho é um curta-metragem produzido ao longo de dois anos, entre Fortaleza e Cariri. Em abril de 2008, foi o homenageado da II Mostra Curtas Cariri, que aconteceu nas cidades de Crato e Juazeiro do Norte. Na ocasião, exibiu o documentário de Adriano Lima e contou um pouco sobre as histórias que viveu. Quando perguntado o que achava da homenagem, respondeu do jeito que lhe é peculiar: "sendo sobre cinema, pode faturar em cima de mim".


A Cultura Viva da Poesia Marginal




Wilson Bernardo, o poeta marginal numa conversa franca mostrando sua vivacidade, revelando diafanamente o seu amor a Arte.



Por Hermínia Rachel Saraiva
Fotos Dihelson Mendonça




Escritor, poeta, fotógrafo sem máquina própria, escultor e professor por opção de sobrevivência. É assim que se auto define Wilson Bernardo o ícone da poesia marginal do Cariri.
É necessário ressaltar que para se entender o que é poesia marginal é interessante mergulhar um pouco na história: Na década de 1970 não era raro encontrar em portas de bares, teatros e cinemas de grandes cidades brasileiras alguns poetas vendendo seus livros, em geral produzidos com escassos recursos gráficos. O conteúdo desses volumes perpetuou-se na memória dos leitores e dos críticos literários sob a denominação de Poesia Marginal, um movimento cultural fundado no auge dos anos 70 num momento de exceção no país. Esse momento de exceção diz respeito à ditadura militar vigente no país a partir de 1964, e que teve sua fase mais contundente no mesmo período em que os poetas marginais escancaravam ao público suas diferentes vozes literárias. São destaques desse movimento: Ana Cristina César, Paulo Leminski, Chacal, Francisco Alvim e Cacaso.
Aqui na região, José Wilson Bernardo da Silva, cratense criativo é o nosso poeta marginal. Começou a panfletar seus poemas em meados da década de 80, ainda quando fazia teatro (Wilson pertenceu ao vanguardista GIA- Grupo Teatral de Improvisação e Ação), desde então são mais de mil panfletos publicados e uma infinidade deles catalogados. “Escrevo desde os dez anos de idade, minha arte não depende de ninguém, eu mesmo crio os mecanismos necessários pra que ela aconteça” relata Wilson, que ressalta entre suas influencias literárias, os poetas brasileiros Castro Alves e Álvares de Azevedo.
Além de panfletar suas poesias, há quatro anos, Wilson vem colocando em prática a disseminação de cartões postais autorais, com fotos artísticas e poesias no verso. Esse outro movimento chama-se poema - postal e dentro de uma conjetura de que há uma necessidade de mostrar a poesia a todos, o poeta distribui onde pode sua arte “Vendo pros amigos, ofereço, envio pra pessoas do mundo afora” e assim vai realizando literalmente o seu Marketing pessoal”
Wilson tem consciência de que Cultura não é para todos e é um grande lutador contra essa norma imposta pela sociedade “Temos que desrotular os conceitos funcionais, existe um preconceito de que a periferia, não gosta do que é intelectualmente artístico, da música, da arte em geral de qualidade. Talvez alguns, mas como podem gostar do que não se conhece, do que não se tem acesso?” reflete. Na concepção do artista, a Arte em todas as suas faces tem que ser mostrada sem amarras e sem convencionalismos.
Independente dos incentivos que recebe Wilson Bernardo continua a fazer o seu trabalho, ele frisa que falta apoio aos artistas, mas que ainda existem pessoas que investem e acreditam em quem faz Arte, “o advogado Luiz Carlos Duarte, o Doutor em Economia e também músico Micaelson Lacerda e Chiquinho Barreira, empresário do ramo imobiliário são companheiros que acreditam nessa de que a cultura como um todo merece apoio e muito respeito”
A nova empreitada do poeta marginal é um livro de ouro, nesse livro quem assinar e fizer a sua colaboração automaticamente receberá algo em troca, um poema, um poema-postal, um CD. Esse livro de ouro, o ajudará a publicar um livro com seus poemas. “Ainda não publiquei nenhum livro, mas já lancei poetas como Jeilson Ribeiro e Marcos Leonel que já publicaram suas obras e isso para mim é uma honra”
E assim caminha a humanidade, e assim caminha Wilson Bernardo, o poeta marginal que acredita que desvincular a cultura é democratizá-la, que não pretende com sua arte colecionar elogios o que o poeta realmente almeja é que suas obras sejam entendidas, questionadas e sobretudo respeitadas.

Mais sobre o Poeta Marginal:
www.wbpoemapostal.blogspot.com

“Hollywood fica ali bem perto...”




Por Wilson Borba

Fotos Allan Bastos



Vejo distante a senhora em seu cavalete adicionando mais um pouco de tinta ao rosto da diva. Esta imagem lúdica percorre o imaginário como um quadro de Pierre Cardin, mas esta cena não é uma pintura, ela é real.
O autor do livro O Ato Fotográfico, Philippe Dubois, diz em sua obra que a fotografia é o olhar recortado do real. Será mesmo? Poderíamos não interferir na fotografia? Para Telma Saraiva isto não existe. A interferência pode ser feita com pinceladas de tinta, oferecendo à fotografia o olhar e a perspectiva do artista.
O primeiro registro fotográfico da artista não era exatamente impresso em papel Kodak e sim em folhas de papel comum em seu caderno de desenhos. Ela começou despretenciosamente. Nesta época, a menina Telma fazia desenhos de suas colegas e professores do Colégio Santa Teresa de Jesus, em Crato. Retratos esses coloridos com lápis de cor pastel, revelando que aquela adolescente iria despontar como uma artista plástica e fotógrafa precoce no seio da sociedade caririense.
A fotografia. Esta surgiu graças a sua família, mas especificamente através de seu pai Júlio Saraiva que mantinha um estúdio fotográfico. Nesta mesma época, foi incentivada pelo pai a assistir filmes legendados no Cine Cassino Sul Americano com a intenção de treinar a leitura rápida. Aqui, se é que podemos dizer, começou sua carreira como atriz de Hollywood.
A adolescente Telma Saraiva apaixonou-se por aquele mundo mágico que o cinema lhe apresentava e começou a imaginar-se como Vivian Leigh, Rossana Podestà, Jane Frazee, Judy Garland, Rita Hayword, entre tantas outras. Nesta mesma ocasião, Telma iniciou a sua coleção de revistas A Cena Muda e de embalagens dos sabonetes Lever, ambos traziam em seu conteúdo matérias e informações sobre as celebridades de Hollywood.
Telma em seus pequenos, mas grandiosos sonhos adolescentes começou a se imaginar uma atriz do lindo sonho americano. A experiência com aquarela e com a fotografia levou-lhe a pensar algo inusitado, “Por que não se fotografar como atriz de Hollywood?”. Melhor, “Por que não se pintar?”, lembra a artista. A época era 1940 e através de um anúncio na mesma revista que colecionava conseguiu comprar as tintas importadas para iniciar o trabalho que marcaria a sua vida.
A artista fazia tudo. Iniciava o processo com a maquiagem e penteados, confeccionava as roupas, se auto-fotografava, revelava em preto e branco e aí sim, colocava cor sobre a impressão fotográfica. Na pintura era onde surgiam adereços e enfeites, por exemplo: Os óculos Ray Ban, muito famosos na época, surgiriam na pintura ou até mesmo rugas indesejadas poderiam ser retiradas sem o menor remorso. A metamorfose estava completa. “Eu via as artistas no cinema, achava bonita e comecei a querer me retratar como elas. Assistia aos filmes que tinha artistas vestidas de roupas da Grécia, aí eu fazia as roupas e o penteado. Depois fui me introduzindo na parte de estúdio com o meu pai e aprendendo a manejar as máquinas e já fui fazendo as auto-fotografias. As máquinas tinham aqueles disparos automáticos. Então, usava espelhos e os colocava atrás da Câmera e ficava me vendo como ia sair na foto” comenta Telma.
Pintar as fotografias não era algo tão comum como imaginamos, a quem diga que Telma pode ser a verdadeira descobridora do Photoshop tão usado nos dias atuais. O artifício da pintura mostrava-se uma possibilidade para transformação. A arte de Telma tão despretensiosa, no início, se mostraria um grande trunfo ante a possibilidade de encontro entre o mundo real e o imaginário adolescente das décadas de 40 e 50.
Mas, as fantasias de Telma vão além dos retratos fotopintados. Ela começou a construir um mundo diferente para si. Além das roupas e penteados, a artista Telma Saraiva iniciou também a ambientação do que poderíamos chamar de espaço dos sonhos hollywoodianos. Sua casa parece ter saído das películas de E o Vento Levou... A Scarlat O’hara/ Telma Saraiva teria enfim o seu palácio para reinar como diva absoluta.
Ambientado com móveis coloniais, nenhuma atriz de Hollywood ficaria pouco à vontade na casa da artista. Seus quartos, salas, jardins, e tudo o mais na casa nos transportam para épocas diferentes. “É uma casa diferente, eu sempre gostei das coisas antigas, pois são feitas com capricho e feitas à mão, não é trabalho com máquinas, armazenadas e feitas em série. Eu tenho conservado a minha casa neste estilo”, orgulha-se a artista.
Mas, Telma somente veio a ser descoberta para a fama em 2005 quando o fotógrafo e professor da Universidade Regional do Cariri – URCA, Titus Rield organizou uma exposição de suas fotopinturas no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - CDMAC, em Fortaleza. Antes disso, os trabalhos de Telma eram vistos apenas nas casas de seus clientes, como decoração e recordação em suas salas de visita.
De lá para cá ocorreram diversas exposições; em 2006 na Pinacoteca do estado de São Paulo e, em 2008 na Galeria Estação, também na capital paulista, intitulada: Telma Saraiva – A procura de um mito.
Nesta exposição, Telma “conversa” com a atriz Marilyn Monroe. São 150 fotografias da artista caririense que estão expostas junto as 60 fotos feitas pelo americano Bert Stern dias antes da morte do furacão Marilyn. O que mais impressiona nas exposições é a forma como foram estruturadas, de um lado a atriz americana despida de todos os estereótipos criados pela mídia sensacionalista americana e de outro a anônima Telma e suas nuances artísticas em busca de uma projeção hollywoodiana. O mito versus a procura de um mito.
As coincidências não terminam aqui. Telma ou Norma? Esta foi a primeira dúvida que o senhor Júlio Saraiva sentiu ao nascer sua filha. Telma foi o nome escolhido, mas que neste momento encontra-se cara a cara com a Norma Jean Baker ou Marilyn Monroe. Nesta mesma exposição, foi solicitada da artista uma releitura de Marilyn e qual não foi a surpresa do curador quando uma jovial senhora de 76 anos se despiu de suas vaidades para trazer do seu imaginário composições inspiradas neste ensaio. São quatro fotos da Telma atual que demonstram toda a imaginação e sensualidade da artista.
Hoje, neste exato momento, Telma ainda continua trabalhando. Não mais nas fotopinturas das divas, mas em restaurações e outras pinturas. Porém, o sonho nunca morre, ele renasce diferente e inteiro para um dia tornar-se musa. Telma já não procura mais o mito, ela o é por inteira.